sábado, 20 de fevereiro de 2010

Do quarto

Aqui o tempo não se engana, tem chovido quase sempre desde que cheguei. Uma neblina espessa e cinzenta teima em deixar as paredes húmidas e o pavimento escorregadio. Sinto a cidade a transpirar, e pela janela embaciada vejo mais água a correr; pela estrada, da chuva, dos beirados, dos toldos; água que inunda os passeios, que escorre dos canos do esgoto; e mais água que corre nos canais. Apesar disso tudo me parece sujo e gasto. Parece que quando a água corre deixa atrás de si um rasto pegajoso, que contamina as ruas de um certo cheiro pestilento. Como agora, gosto de me sentar aqui e observar, e o que é certo é que tenho descoberto factos interessantíssimos acerca da vida neste bairro. Lá em baixo o homem dos croissants, à porta do supermercado onde costumo fazer as compras da semana, luta contra uma série de clientes mal dispostos e esfomeados, que esperam à chuva pela goluseima matinal. É satisfação imediata servida com ou sem creme, um prazer adocicado ao alcance de uns cêntimos, sem chatices, sem contrapartidas, a não ser uns quilinhos a mais no final do mês. No meu relógio já passa das 10h30m e como sempre, pontualmente e todos os sábados já esperam na fila Nina, a dona do popular cabeleireiro do 10ème; um pouco mais atrás, mas sem a perder de vista o Monsieur Jacquin que trabalha na tabacaria; Marie Dupond, do escritório dos advogados em frente, e claro a minha querida JulietteDois croissants para mim e dois pains au chocolat para os meus netos – os quais, já mo disse em tom de confissão, saboreia sem remorços enquanto assiste à novela da tarde. Se fosse escritora com certeza que estaria agora com o meu diário a anotar o olhar indiscreto de Jacquin sobre Nina, que de vez em quando espreita para trás fingindo procurar alguém, deixando o seu olhar cruzar-se acidentalmente com o dele enquanto mordisca, nervosa, o croissant; ou então estaria a tentar captar a expressão impaciente da advogada - três filhos pequenos em casa, um marido ausente, uma escapadela nocturna demasiado longa, e uma reunião dali a poucas horas na qual se deve fingir muito confiante. Por enquanto divirto-me a observar. Vou conhecendo as manhas, os hábitos, e os segredos dos meus vizinhos e eles de certeza que também vão sabendo dos meus. Qualquer dia tenho de começar a organizar toda esta informação. A Julliete passa a vida a dizer-mo – Isso é material valioso, se tu soubesses... .

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Porta azul do nº 82

Como de costume desço as escadas ainda em pijama, dobro a ombreira da porta de mansinho e corro até à caixa do correio com receio de me molhar. A terceira porta verde do conjunto mal organizado de caixas de correio tem o meu nome, já meio apagado pela chuva, improvisado num autocolante amarelo. Por baixo, ainda se consegue distinguir o nome do senhorio, do qual apenas conheço a voz, pelo telefone, e quase sempre pelas razões mais desagradáveis.
Quando falei pela primeira vez com Monsieur Allan, fiquei entusiasmada, a sua voz era suave e arrastada, própria de um artista de já certa idade, seguro de si e em paz com o mundo. Diria mesmo que tinha algo de sedutor. Deu me vontade de rir, todo um cenário cliché à boa maneira francesa alegrou o meu humor matinal: homem de cabelos compridos, presos e grisalhos, sentado junto a janela que dá para o terraço; escreve sob as traves de madeira que suportam o tecto empenado, enquanto penteia suavemente os finos bigodes, tal qual nos filmes de D’Artagnan. Foi este distinto cavalheiro que há poucos meses atrás me convenceu a arrendar este peculiar apartamento, que como dizia num inglês quase perfeito: é um apartamento que cheira a vida, carismático e extremamente acolhedor, bem no centro de Paris, como você deseja. Se vida cheirar a sopas quentes, a orvalho matinal, e tapetes velhos, então sim este apartamento tresanda a vida, de outra forma, e agora à distância consigo ver que não passa de um quarto velho, num prédio velho, somente velho. Não queira isto dizer que não me sinta bem aqui. Pelo contrário, o que tanto me repele nele é o que torna de facto mais carismático; afinal de contas Allan até tinha razão.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

A trama acontece num prédio modesto no centro de Paris. Cheira a pão fresco, especiarias, romance e mistério... Ouve-se o buliço da rua, o apito dos carros, o sussuro das vizinhas atrás da porta. Aqui nada acontece por acaso...já dizia Madame Poullet - São os ratos minha querida, são os ratos!