quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Porta azul do nº 82

Como de costume desço as escadas ainda em pijama, dobro a ombreira da porta de mansinho e corro até à caixa do correio com receio de me molhar. A terceira porta verde do conjunto mal organizado de caixas de correio tem o meu nome, já meio apagado pela chuva, improvisado num autocolante amarelo. Por baixo, ainda se consegue distinguir o nome do senhorio, do qual apenas conheço a voz, pelo telefone, e quase sempre pelas razões mais desagradáveis.
Quando falei pela primeira vez com Monsieur Allan, fiquei entusiasmada, a sua voz era suave e arrastada, própria de um artista de já certa idade, seguro de si e em paz com o mundo. Diria mesmo que tinha algo de sedutor. Deu me vontade de rir, todo um cenário cliché à boa maneira francesa alegrou o meu humor matinal: homem de cabelos compridos, presos e grisalhos, sentado junto a janela que dá para o terraço; escreve sob as traves de madeira que suportam o tecto empenado, enquanto penteia suavemente os finos bigodes, tal qual nos filmes de D’Artagnan. Foi este distinto cavalheiro que há poucos meses atrás me convenceu a arrendar este peculiar apartamento, que como dizia num inglês quase perfeito: é um apartamento que cheira a vida, carismático e extremamente acolhedor, bem no centro de Paris, como você deseja. Se vida cheirar a sopas quentes, a orvalho matinal, e tapetes velhos, então sim este apartamento tresanda a vida, de outra forma, e agora à distância consigo ver que não passa de um quarto velho, num prédio velho, somente velho. Não queira isto dizer que não me sinta bem aqui. Pelo contrário, o que tanto me repele nele é o que torna de facto mais carismático; afinal de contas Allan até tinha razão.

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